Tudo ao molho e fé em Ronaldo
Mais uma noite na “Padaria da Brites”
Pedro Azevedo
Quando, no longínquo ano de 1385, corria o tempo de El Rei D. João I, as tropas portuguesas enfrentaram o exército de João de Castela, em Aljubarrota, a bola do jogo estava então longe da forma redonda que hoje lhe conhecemos, antes possuía a geometria rectangular de uma pá, aliás tecnicamente manejada com brilhantismo pela padeira Brites, o nosso Cristiano Ronaldo da época. [A presença da dita Padeira no contexto da batalha é uma questão do for(n)o interno português, que ainda hoje permanece envolta em algum mistério.] Todavia, a comandar as tropas, já havia um treinador (D. Nuno Álvares Pereira), por sinal bem português, ou não tivesse sido essa batalha uma resposta às pretensões castelhanas de influenciar as decisões estratégicas lusas através do Conde de Andeiro. O Conde acabou defenestrado no Paço e o Condestável avançou para Aljubarrota com um esboço da Táctica do Quadrado a faiscar nas sinapses do seu cérebro. O resultado foi o que se viu. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (como escreveu o Camões e cantou o Zé Mário Branco): não só o nosso herói dos tempos modernos alinha agora pelos árabes (Al Nassr) como quis o destino que, 640 anos depois, Portugal viesse a defrontar a Espanha na final da Liga das Nações de futebol com um espanhol no banco a entoar tão efusivamente o nosso hino que nem um patriota tuga nascido e criado no bairro de Xabregas, freguesia do Beato. Creio que é a isto que os mais cinicos denominam de Globalização.
A qualidade dos nossos jogadores foi sempre tão grande que Portugal chegou até a dar-se bem no tempo em que em vez do Santo Condestável havíamos sido dirigidos pelo (Fernando) "Santos Contestável", pelo que a realidade de o Roberto ser tão contestado nas vésperas de defrontarmos a Espanha não poderia ser um dado determinante no desfecho do encontro. Muda-se o ser, muda-se a confiança e a bem da verdade havia que pesar também nos pratos da balança o grande conhecimento que os nossos internacionais tinham de "Nuestros Hermanos" e da sua forma de jogar inspirada em Cruijff e nos seus discípulos: Nelson Semedo e Trincão foram jogadores do Barcelona, Ruben Dias e Bernardo Silva são treinados por Guardiola já há alguns anos, Nuno Mendes, João Neves, Vitinha e Gonçalo Ramos haviam acabado de atingir o pináculo da consagração europeia com Luís Enrique e Cristiano Ronaldo foi o grande ícone do Real Madrid e o areal inteiro na engrenagem que impediu que a hegemonia catalã nessa fase tivesse sido total. Havia também o facto de o nosso Seleccionador ser espanhol, embora a sua predilecção pela flexibilidade táctica, também conhecida por experimentalismo, o aproximasse mais da linha de pensamento de alguns cineastas portugueses do que da escola de futebol do país vizinho, não constituindo assim uma vantagem tão evidente para nós.
Todo o mundo é composto de mudança. Enquanto Martinez contava a táctica aos seus jogadores, na impossibilidade física de D. João I estar presente, a dupla de M&Ms da República, Marcelo e Montenegro, de megafone ao punho e postura de cheerleading no Beergarden de Munique, arregimentava os foliões lusos que previamente ao jogo aí se concentravam. Marcelo avançou logo com um prognóstico de 3-0, arrancando alguns sorrisos e mostrando-se assim particularmente identificado com a Funzone onde se encontrava. Não se sabe se igualmente foi transmitir a mensagem ao balneário, mas o doping emocional aos adeptos ficou logo ali dado. [Não são só os jogadores, os adeptos também têm direito ao seu aquecimento, e se umas cervejas ajudam a inflamar o corpo e a alma, depois o presidente faz o resto.]
Tomando sempre novas qualidades, Portugal foi sempre melhorando ao longo do jogo. Após um início sobre o fraco, penalizado com o primeiro golo da Espanha, a Selecção chegou ao empate numa grande arrancada de Nuno Mendes. Antes do jogo, os media espanhóis haviam projectado o jogo como um duelo geracional entre Lamine Yamal e Cristiano Ronaldo, mas esqueceram-se daquela assoalhada sita na algibeira do calção de Nuno Mendes onde Yamal morou durante todo o tempo em que esteve em jogo. Em cima do intervalo, a Espanha voltou a adiantar-se no marcador. Portugal entrou a perder no segundo tempo, mas Nuno Mendes não se conformou e cedo voltou a promover um desequilíbrio pela esquerda. A bola enroscou na perna de um adversário e aos 40 anos Cristiano Ronaldo compreendeu melhor o ponto de queda da bola que Cucurella e empatou o jogo. Com a entrada de Leão, sempre muito apoiado por Nuno Mendes, Portugal então superiorizou-se, efeito que se estendeu à primeira parte do prolongamento. Mas o que parece tão fácil nos pés de Ronaldo, e por isso é desvalorizado, foi difícil para Nelson Semedo e os demais, que não aproveitaram novas solicitações de Nuno Mendes, ontem em modo Bola de Ouro da France Football. Mas a justiça não foi feita ali, a segunda parte do prolongamento foi inconclusiva e tivemos de ir a penáltis. Aí Portugal não falhou nenhuma penalidade e Diogo Costa defendeu a de Morata. Seis anos depois, Portugal voltava a vencer a Liga das Nações, com o balzaquiano Ronaldo ainda e sempre parte do elenco. Um dia de festa portanto para uma grande maioria de portugueses mas também para os farmacêuticos do nosso país: o stock de Rennie e Kompensan esgotou, um facto nada insólito numa nação onde as poucas soluções são muitas vezes vistas como os grandes problemas.
Tenor "Tudo ao molho...": Nuno Mendes