Tudo ao molho e fé em Deus
A (mito)mania de falhar de cabeça
Pedro Azevedo
Se até Aquiles tinha um ponto fraco, não admira que Gyokeres, igualmente um herói da mitologia (neste caso, leonina), também o tenha. O "calcanhar de aquiles" do sueco é o jogo de cabeça. E não se manifesta só na área do adversário, onde porventura dará mais nas vistas, mas igualmente na nossa área: por duas vezes o Estrela colocou a bola na sua zona de acção, por duas vezes criou perigo. Uma deu golo, outra motivou uma boa defesa de Israel. Não é a primeira vez que acontece - assim de memória recordo-me, entre outros, de um golo do Gil Vicente em Alvalade e de outro do Portimonense em sua casa, ambos na sequência de bola parada - e deve ser urgentemente corrigido. Amorim, sem nomear jogadores, chamou a atenção para esse erro na conferência de imprensa e fê-lo bem, até porque de outro modo só ficaria na retina do adepto a saída fora de tempo do guarda-redes do Sporting. (Esclareço que não se trata só da forma como Gyokeres coloca a cabeça à bola, tem mais a ver com a falta de confiança neste gesto que o faz não antecipar os lances e atacar atempadamente a bola.)
Quer este arrazoado em cima pôr em causa o Gyokeres? Não, o sueco está tão ligado à nossa redenção e, quiçá, salvação (após um quarto lugar no campeonato que valeu a não presença na Champions desta temporada) que deve ser visto como um mito soteriológico: os 36 golos e 14 assistências, que o tornam o jogador na Europa com mais participações directas em golos, assim o demonstram. Ontem, Sexta-feira Santa, simplesmente absteve-se de comer de cebolada a carne toda picadinha do costume, mas o mais certo é ter guardado o apetite para a jornada dupla com o Benfica. A avaliar pelo estado em que fica após cada jejum, eu diria que estará em ponto de rebuçado nesse momento. Que então a fera se solte em todo o seu esplendor!...
Não é que a estrela de Gyokeres tenha empalidecido, simplesmente não esteve ao seu nível. Ou ao nível altíssimo a que nos habituou (mal, para o nosso bem), fazendo apenas um jogo satisfatório. Pelo que a vedeta de ontem foi o Trincão, uma espécie de Lázaro ressuscitado por contacto com o deus Gyokeres. Explorando inteligentemente tanto o espaço entre-linhas como o existente nas costas dos defesas do Estrela, o Trincão fez um grande jogo. A que só faltou um golo da sua parte, que até poderia ter acontecido num par de ocasiões. E se numa o guarda-redes adiou momentaneamente os seus intentos (Nuno Santos marcou na recarga), na outra teve tudo para facturar quando o Kialonda Gaspar preferiu apostar as fichas todas na sua possibilidade de falhar face à inevitabilidade de golo que resultaria de lhe fechar o espaço interior e permitir-lhe a cedência de bola a um desmarcado Gyokeres - uma questão típica de uma cadeira de cálculo de probabilidades.
Outros jogadores em destaque foram Daniel Bragança e Hidemasa Morita. Muita qualidade de passe têm estes dois, que descobriram inúmeras vezes colegas entre-linhas. Jogando muitas vezes de primeira, não se deixando encurralar pela pressão da linha média do Estrela, sempre uns décimos de segundo atrasada face à velocidade de pensamento e de execução do meio campo do Sporting. Na mesma onda verde, Inácio, entrado para o segundo tempo, foi outro jogador que procurou jogadores soltos no espaço interior, criando perigo para o Estrela. Bem também estiveram os centrais, com a rapidez de St Juste a sobrepor-se a alguns "passes para o hospital" (conhece como ninguém o caminho) que fez e deveria evitar a fim de que males maiores possam emergir como no golo do Estrela. Nuno Santos também esteve ao seu nível, mais regular do que Geny. E Paulinho marcou um golo numa bela execução de cabeça, além de ter procurado sempre que possível ser opção para a ligação de jogo com o ataque.
Não tínhamos necessidade de sofrer tanto, mas Sporting sem sofrimento seria paradoxal e desafiaria todo o conhecimento que os Sportinguistas foram adquirindo ao longo de seis décadas de estudos epistemológicos baseados na verdade e no nosso sistema de crenças. Por falar em crenças, a de que seremos campeões vai crescendo jogo a jogo. Depois de ontem, ficaram a faltar oito. Mas só precisamos de ganhar sete. Ou seis, desde que vençamos o derby. Bom, mas isso será para depois, porque na terça teremos Taça. Na Luz. Haveria melhor palco para uma equipa tão eminentemente renascentista? Então, que o eminente seja iminente e a nossa fluidez de jogo ilumine o rectângulo de jogo sito em Carnide!
Tenor "Tudo ao molho...": Trincão